Resumo
O
presente artigo tem como objetivo analisar o sistema de precedentes judiciais
inserido no Projeto do Novo Código de Processo Civil e os impactos que esse
sistema produzirá em nossa cultura jurídica processual. Atualmente o direito
processual brasileiro vem sofrendo fortes influências do direito
anglo-saxônico, estabelecendo um sistema híbrido onde tanto o direito
codificado como a interpretação jurisprudencial são fontes primárias do direito,
como vem ocorrendo com as súmulas vinculantes, repercussão geral, recurso
especial por amostragem, entre outros exemplos. Neste sentido, a jurisprudência
e as súmulas dos tribunais superiores são formas contemporâneas de dinamizar o
direito, permitindo a atualização e funcionalidade do ordenamento jurídico,
além de garantir a previsibilidade das decisões e a consequente segurança
jurídica. Com efeito, as decisões dos tribunais superiores, especificamente o
Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, são fundamentais,
como fontes de referência epistemológica para apreciação e solução dos conflitos
levados ao Poder Judiciário, com significativas repercussões em nosso sistema
jurídico e que serão encartadas no Novo Código de Processo Civil. Com efeito, o
artigo aborda as regras esparsas contidas no Código de Processual Civil atual e
através de um estudo de caso analisa como o Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro vem aplicando e justificando os precedentes do Superior Tribunal
de Justiça. Através de análise qualitativa de acórdãos o estudo reflete sobre a
compatibilidade do sistema de precedentes judiciais, originário do common law, com a cultura jurídica
brasileira estabelecida a partir do civil
law. Considerando que o sistema de precedentes disposto no Projeto do Novo
Código de Processo Civil tem como fundamento refinada teoria acerca dos
precedentes judiciais, seu adequado funcionamento prescinde de uma correta
metodologia de aplicação levado a efeito pelos Tribunais. Assim, o estudo visa,
através de análise empírica, identificar qual metodologia de aplicação de
precedentes judiciais o tribunal utiliza e se esta é compatível com o sistema
de precedentes do Projeto do Novo Código de Processo Civil.
Introdução
O Projeto 8046/10 da Câmara dos Deputados, que trata do Novo Código de Processo Civil, que tramita sob a relatoria do Deputado Sérgio Barradas, traz inúmeras inovações para o sistema processual brasileiro, adequando o processo brasileiro aos avanços doutrinários e jurisprudências levado a efeito. Desta forma, o Novo Código de Processo Civil somente poderá produzir os resultados esperados se os professores, advogados, juízes e promotores, estiverem sintonizados com os atuais avanços da doutrina, jurisprudência e dos estudos comparados acerca das principais propostas incorporadas ao texto do projeto.
Um dos temas que requer maior
preparo dos operadores do direito é a disposição acerca do sistema de
precedentes. O NCPC trata, em detalhes, do sistema de precedentes,
regularizando, pormenorizadamente, a aplicação deste sistema que visa
uniformizar a jurisprudência dos Tribunais, alinhada com o entendimento dos
Tribunais Superiores, garantindo maior isonomia e segurança jurídica. Trata-se
de matéria com forte rigor científico, o exige não só técnica apurada para
aplicação como também uma cultura jurídica compatível para melhor assimilação
da mudança proposta.
Assim,
considerando a importância do sistema de precedentes no NCPC e a necessidade de
se compreender adequadamente este sistema para melhor aplicação importante se
faz discutir exaustivamente a temática à luz do ordenamento processual vigente
que incorpora de forma esparsa o sistema de precedentes.
1 – Valorização dos Precedentes
Judiciais no Direito Processual Civil Brasileiro
A análise
do sistema de precedentes judiciais disposto no Projeto do Novo Código de
Processo Civil prescinde da reflexão acerca da inclusão deste mecanismo de
julgamento no direito processual brasileiro.
Não há
dúvida que a demora na prestação da tutela jurisdicional produz efeitos
negativos na sociedade abalando, por assim dizer, a própria credibilidade do
sistema judiciário. Por outro lado, a falta de estrutura adequada do Poder
Judiciário e o alto número de processos judiciais distribuídos mensalmente
contribui para a sobrecarga de trabalho e compromete a administração adequada
da justiça inviabilizando a prestação da tutela jurisdicional em tempo
razoável, nos termos do art.5º, LXXVIII, da Constituição Federal de 1988.
No campo
da sociologia, autores como Boaventura Santos (2007), apontam a morosidade
sistêmica como um dos principais problemas do sistema de justiça contemporâneo,
principalmente no que diz respeito à confiabilidade institucional. Por outro
lado, a globalização econômica exige dos países um sistema de justiça rápido,
eficiente, que garanta, a um só tempo, segurança jurídica e a previsibilidade
dos negócios (Boaventura, 2007).
No campo
do direito processual civil, a necessidade de se garantir maior isonomia no
tratamento de causas idênticas e mais celeridade no julgamento dos conflitos de
massa estimulou a formulação de diversas propostas de reformas para
racionalizar a administração da justiça (Marinoni, 2010) garantindo maior
celeridade e estabilidade das decisões judiciais.
Diante
deste contexto, diversas reformas foram engendradas para se alcançar maior
estabilidade jurídica através do fortalecimento dos precedentes judiciais. A
Lei 9.756/98 iniciou a inclusão do sistema de precedentes em nosso ordenamento
processual ao dar maiores poderes ao Relator nos julgamentos de recursos e
incidentes processuais com a nova redação do art. 120, parágrafo único, e o
art. 557 (julgamento monocrático), do Código de Processo Civil.
Diversas outras reformas foram implementadas
sistematicamente dentre as quais destacamos a criação da súmula vinculante e a
Repercussão Geral no Recurso Extraordinário no âmbito do Supremo Tribunal
Federal, através da Emenda Constitucional 45/2004, o julgamento do Recurso
Especial por Amostragem, criado pela Lei 11.672/2008.
Desta
forma, o sistema de precedentes judiciais foi estabelecido, paulatinamente, de
forma acrítica, pontual e sem o devido aprofundamento da doutrina processual
para dar sustentação a aplicação adequada e efetiva do sistema de precedentes
na processualística brasileira.
É neste
ambiente, social, político e institucional, que o NCPC sistematiza os
precedentes judiciais de forma ampla e pormenorizada. Mas para que todos os
objetivos propostos sejam atingidos não basta simplesmente promover a alteração
legislativa mas, e principalmente, criar condições objetivas e subjetivas para
que as alterações sejam compreendidas e apreendidas pelos operadores do direito
e, desta forma, seja assimilada pela nossa cultura jurídica processual.
2 – Sistema de Precedentes no Novo Código de Processo Civil
O Projeto 8046/10, sob a relatoria do Deputado Sérgio Barradas, aprimorou o sistema de Precedentes transferindo do art. 882, para o art. 483, através da sugestão de Luiz Guilherme Marinoni, sendo incluído no Capítulo da Sentença e Coisa Julgada, na seção denominada “Da eficácia do Precedente Judicial”. Com efeito, a proposta de substitutivo enviado à Câmara em 22/10/2013, aprimora a redação anterior. Assim, o sistema de Precedentes é tratado pelo Projeto nos arts. 520 e 521, conforme transcrição abaixo:
Art.
520. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável,
íntegra e coerente.
§
1º Na forma e segundo as condições fixadas no regimento interno, os tribunais
devem editar enunciados correspondentes à súmula da jurisprudência dominante.
§
2º Ao redigir enunciado de súmula, é defeso ao tribunal estabelecer diretivas
que não se atenham às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua
edição.
Art.
521. Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos princípios da
legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção
da confiança e da isonomia, as disposições seguintes devem ser observadas:
I
– os juízes e tribunais seguirão as decisões e os precedentes do Supremo Tribunal
Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II
– os juízes e os tribunais seguirão os enunciados de súmula vinculante, os
acórdãos e os precedentes em incidente de assunção de competência ou de
resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e
especial repetitivos;
III
– os juízes e tribunais seguirão os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal
Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria
infraconstitucional;
IV
– não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e
tribunais seguirão os precedentes:
a)
do plenário do Supremo Tribunal Federal, em controle difuso de
constitucionalidade;
b)
da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de Justiça, nesta ordem,
em matéria infraconstitucional;
V
– não havendo precedente do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de
Justiça, os juízes e órgãos fracionários de tribunal de justiça ou de tribunal
regional federal seguirão os enunciados de suas respectivas súmulas e, não
havendo estes, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo,
nesta ordem;
VI
– os juízes e os órgãos fracionários de tribunal de justiça seguirão, em
matéria de direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial
respectivo, nesta ordem.
§
1º A modificação de entendimento sedimentado poderá realizar-se:
I
– por meio do procedimento previsto na Lei nº 11.417, de 19 de dezembro
de 2006, quando tratar-se de enunciado de súmula vinculante;
II
– por meio do procedimento previsto no regimento interno do tribunal
respectivo, quando tratar-se de enunciado de súmula da jurisprudência
dominante;
III
– incidentalmente, no julgamento de recurso, na remessa necessária ou na causa
de competência originária do tribunal, nas demais hipóteses dos incisos II a VI
do caput deste artigo.
§
2º A modificação de entendimento sedimentado poderá fundar-se, entre
outras alegações, na revogação ou modificação de norma em que se fundou a tese
ou em alteração econômica, política ou social referente à matéria decidida.
§
3º A decisão sobre a modificação de entendimento sedimentado poderá ser
precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou
entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§
4º O órgão jurisdicional que tiver firmado a tese a ser rediscutida será
preferencialmente competente para a revisão do precedente formado em incidente
de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, ou em
julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos.
§
5º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante, sumulada ou
não, ou de precedente, o tribunal poderá modular os efeitos da decisão que
supera o entendimento anterior, limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo
efeitos prospectivos.
§
6º A modificação de entendimento sedimentado, sumulado ou não, observará
a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os
princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§
7º O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos
fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros do colegiado, cujo
entendimento tenha ou não sido sumulado.
§
8º Não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste artigo os
fundamentos:
I
– prescindíveis para o alcance do resultado fixado em seu dispositivo, ainda
que presentes no acórdão;
II
– não adotados ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador,
ainda que relevantes e contidos no acórdão.
§
9º O precedente ou jurisprudência dotado do efeito previsto nos incisos
do caput deste artigo poderá não ser seguido, quando o órgão jurisdicional
distinguir o caso sob julgamento, demonstrando fundamentadamente se tratar de
situação particularizada por hipótese fática distinta ou questão jurídica não
examinada, a impor solução jurídica diversa.
§
10. Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por
questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial
de computadores.
§
11. O órgão jurisdicional observará o disposto no art. 10 e no art. 499, § 1º,
na formação e aplicação do precedente judicial.
Art.
522. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de casos repetitivos a
decisão proferida em:
I
– incidente de resolução de demandas repetitivas;
II
– recursos especial e extraordinário repetitivos.
Parágrafo
único. O julgamento de casos repetitivos tem por objeto questão de direito
material ou processual.
Com efeito, esta nova sistemática
incorpora a lógica dos precedentes judiciais existentes na Inglaterra e EUA e
demais países adeptos Common Law,
onde os precedentes são editados, aplicados, revistos e cancelados através da ratio decidendi, obter dicta, distiguishing
e overruling.
Isso
demonstra o alto grau de refinamento teórico e doutrinário proposto pelo
projeto, o que demanda um aprimoramento técnico de todos os operadores do
direito como também um novo paradigma epistemológico na produção do conhecimento
científico no âmbito do processo civil, como também uma ampla reforma no ensino
jurídico, pois a nossa cultura jurídica foi forjada no sistema Civil Law[1].
A
disposição legal acerca dos precedentes no projeto é exaustiva e contempla
todos os institutos necessários ao bom funcionamento do sistema de precedentes,
tal como estabelecido na cultura jurídica do Common law. No entanto, a formação dos profissionais do direito
necessita, com urgência, de aprimoramento técnico sob pena de trabalharmos com
os precedentes judiciais com a lógica interpretativa da hermenêutica do direito
codificado.
No
intuito de contribuir para melhor compreensão do sistema de precedentes,
passamos a analisar, ainda que brevemente, a finalidade de cada instituto do
referido sistema.
2.1. Ratio decidendi
A ratio decidendi, ou as razões de decidir, os fundamentos jurídicos do precedente são fundamentais para aplicação aos demais casos concretos semelhantes ao que gerou o precedente. No NCPC, a disposição acerca da ratio decidendi está no art. 521, §7º, a saber:
§
7º O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos
fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros do colegiado, cujo
entendimento tenha ou não sido sumulado.
Os denominados fundamentos determinantes dos precedentes é a base para a identificação do direito aplicado a espécie e o fio condutor para aplicação destes mesmos fundamentos para casos semelhantes. Esta análise da ratio decidendi requer uma nova postura do magistrado no Brasil, que é forjado na lógica da subsunção da lei ao caso concreto.
Neste
sentido, a simples transcrição do verbete sumular ou o número do recurso
excepcional que os fundamentos determinantes foram elaborados não é suficiente.
É importante compreender que a motivação da decisão disposto no art. 93, X, da
CF/88, no sistema de precedentes, prescinde da análise detalhada dos
fundamentos determinantes, apontando com clareza as razões pelas quais se está
aplicando um precedente e não outro.
2.2.Obiter
dicta
O
obiter dicta corresponde aos fatos
envolvidos no caso concreto que ensejou o precedente ou os fundamentos
jurídicos que não foram determinantes para formação do entendimento do
tribunal. O referido método de julgamento encontra-se no art.521§ 8º, a saber:
§
8º Não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste artigo os
fundamentos:
I
– prescindíveis para o alcance do resultado fixado em seu dispositivo, ainda
que presentes no acórdão;
II
– não adotados ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador,
ainda que relevantes e contidos no acórdão.
Desta feita, os fatos, os fundamentos periféricos ou relevantes, mas que não foram adotados pela maioria não integra o precedente e como tal não deve ser invocado como ratio decidendi para justificar a aplicação do precedente judicial. Trata-se de exercício intelectual importante pois no direito brasileiro essa distinção não é clara ou sistematizada.
2.3.
Distinguishing
O
critério da distinção é fundamental para a eficácia do sistema de precedente.
Tal método de trabalho visa evitar que o juiz ou tribunal aplique o precedente
de forma indistinta, ou seja, sem refletir profundamente se o precedente é
aplicável ao caso sub judice. A análise
da ratio decidendi, para se verificar
se, de fato, os fundamentos determinantes do precedente utilizado podem ou não serem
aplicados ao caso concreto.
A utilização do precedente não é somente citar inúmeros julgados, como fazem os operadores do direito em geral, mas sim justificar a aplicação do precedente a partir de seus fundamentos determinantes. No entanto, quando os fundamentos determinantes não se aplicam perfeitamente à hipótese, o magistrado deve afastar sua aplicação a partir do critério de distinção. O NCPC regula a distinção do precedente no art. 521, § 9º, a saber:
A utilização do precedente não é somente citar inúmeros julgados, como fazem os operadores do direito em geral, mas sim justificar a aplicação do precedente a partir de seus fundamentos determinantes. No entanto, quando os fundamentos determinantes não se aplicam perfeitamente à hipótese, o magistrado deve afastar sua aplicação a partir do critério de distinção. O NCPC regula a distinção do precedente no art. 521, § 9º, a saber:
§
9º O precedente ou jurisprudência dotado do efeito previsto nos incisos
do caput deste artigo poderá não ser seguido, quando o órgão jurisdicional
distinguir o caso sob julgamento, demonstrando fundamentadamente se tratar de
situação particularizada por hipótese fática distinta ou questão jurídica não
examinada, a impor solução jurídica diversa.
A
distinção é o método de trabalho fundamental para adequada aplicação dos
precedentes no direito processual brasileiro, que foi consolidado na cultura
jurídica do Civil Law.
2.4. Overruling
O overruling corresponde à sinalização levada a efeito, tanto por advogados como por juízes, que o precedente não encontra mais amparo no direito brasileiro. Significa o cancelamento ou alteração do precedente.
Podemos citar como exemplo de overruling o cancelamento da súmula 348 do STJ, que tratava da competência deste tribunal superior para julgamento de conflitos de competência entre um juizado federal e uma vara federal. Este entendimento foi superado pela edição da Súmula 428 do STJ, que define a competência do Tribunal Regional Federal para solução de conflitos de competência entre Juizado Federal e Vara Federal. Essa alteração de posicionamento é denominada de overruling.
Interessante
observar que modificação do precedente, no Brasil, é realizada pelo próprio
Tribunal sem uma sinalização prévia e sistematizada de forma a garantir a
participação de atores outros no processo de modificação. O overruling nos Tribunais Superiores
brasileiros é realizado na mudança de entendimento de determinado órgão
fracionário ou da mudança na composição da Corte. A modificação do precedente,
de forma participativa e com a colaboração das partes, em nosso sentir, é o
ponto mais delicado da inclusão formal do sistema de precedentes pois não
encontra respaldo na cultura institucional do Poder Judiciário.
No Projeto a sinalização do enfraquecimento ou
inaptidão para aplicação está regulada no art. 521, § 1º, a saber:
§
1º A modificação de entendimento sedimentado poderá realizar-se:
I
– por meio do procedimento previsto na Lei nº 11.417, de 19 de dezembro
de 2006, quando tratar-se de enunciado de súmula vinculante;
II
– por meio do procedimento previsto no regimento interno do tribunal
respectivo, quando tratar-se de enunciado de súmula da jurisprudência
dominante;
III
– incidentalmente, no julgamento de recurso, na remessa necessária ou na causa
de competência originária do tribunal, nas demais hipóteses dos incisos II a VI
do caput deste artigo.
§
2º A modificação de entendimento sedimentado poderá fundar-se, entre
outras alegações, na revogação ou modificação de norma em que se fundou a tese
ou em alteração econômica, política ou social referente à matéria decidida.
§
3º A decisão sobre a modificação de entendimento sedimentado poderá ser
precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou
entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§
4º O órgão jurisdicional que tiver firmado a tese a ser rediscutida será
preferencialmente competente para a revisão do precedente formado em incidente
de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, ou em
julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos.
§
5º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante, sumulada ou
não, ou de precedente, o tribunal poderá modular os efeitos da decisão que
supera o entendimento anterior, limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo
efeitos prospectivos.
§
6º A modificação de entendimento sedimentado, sumulado ou não, observará
a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os
princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
3 - Aplicação do sistema de
precedentes no sistema vigente
O
objetivo maior desta reflexão é mostrar que o sistema de precedentes não será criado
pelo NCPC. O Projeto apenas sistematiza uma mudança paradigmática que vem
ocorrendo desde 1998, como já foi dito, quando foi publicada a Lei 9.756/98,
que alterou a redação do art. 557 do Código de Processo Civil, possibilitando
aos relatores julgar recursos através de decisões monocráticas tendo como base
súmula ou jurisprudência dominante do próprio Tribunal ou dos Tribunais
Superiores.
Esta alteração legislativa
iniciou uma mudança paradigmática que foi aprofundada pela Emenda
Constitucional 45 de 2004, que criou a Súmula Vinculante para o Supremo
Tribunal Federal. Outro exemplo de
aplicação do sistema de precedentes no ordenamento jurídico processual
brasileiro diz respeito à decisão nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ou
nas Declarações de Constitucionalidade, onde a decisão terá efeito vinculante
para o próprio Pode Judiciário como também os órgãos da administração pública,
conforme se concluir da leitura do art. 28, § único da Lei 9.868/99.
Destarte, o sistema de precedente já é plenamente utilizado em nosso sistema processual sem que uma discussão mais profunda acerca da sua metodologia de aplicação seja plenamente sedimentada na comunidade jurídica. Neste sentido, pretendemos, ainda que modestamente, levar a efeito um exercício de aplicação desta metodologia visando possibilitar ao operador do direito uma aproximação do sistema de precedentes que já está em vigor na processualística brasileira e será levado às últimas consequências no NCPC.
Destarte, o sistema de precedente já é plenamente utilizado em nosso sistema processual sem que uma discussão mais profunda acerca da sua metodologia de aplicação seja plenamente sedimentada na comunidade jurídica. Neste sentido, pretendemos, ainda que modestamente, levar a efeito um exercício de aplicação desta metodologia visando possibilitar ao operador do direito uma aproximação do sistema de precedentes que já está em vigor na processualística brasileira e será levado às últimas consequências no NCPC.
4 – Aplicação do sistema de precedentes:
Um estudo de caso
A análise da aplicação da sistemática dos precedentes em um caso concreto, prática esta que deve ser realizada por todos os operadores do direito, deve ter como base a análise da ratio decidendi, ou seja, os fundamentos determinantes para aplicação dos precedentes bem como a justificação para sua utilização ou não.
Com
efeito, considerando que os precedentes judiciais já se encontram devidamente
tratados, ainda que não seja de forma sistemática em nosso ordenamento,
importante investigar como os Tribunais fundamentam e justificam a utilização
dos precedentes dos tribunais superiores em suas decisões, sejam elas
monocráticas ou colegiadas. Neste sentido, a aplicação da Súmula 385[2]
do STJ no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos permite uma
reflexão interessante sobre este tema.
Antes mesmo de analisar como os precedentes são aplicados, importante se faz compreender como os tribunais superiores formam seus próprios precedentes. No caso em análise, a súmula 385 foi editada tendo como precedentes julgados onde o próprio Superior Tribunal de Justiça, após julgar 05 recursos[3] do Rio Grande Sul, estabeleceu entendimento sobre a matéria em questão extraindo dos julgados a ratio decidendi para se alcançar o entendimento sumulado, conforme fundamentos determinantes apresentados abaixo, extraído do recurso AgRg no REsp 1057337 (2008/0102640-4 - 23/09/2008):
Antes mesmo de analisar como os precedentes são aplicados, importante se faz compreender como os tribunais superiores formam seus próprios precedentes. No caso em análise, a súmula 385 foi editada tendo como precedentes julgados onde o próprio Superior Tribunal de Justiça, após julgar 05 recursos[3] do Rio Grande Sul, estabeleceu entendimento sobre a matéria em questão extraindo dos julgados a ratio decidendi para se alcançar o entendimento sumulado, conforme fundamentos determinantes apresentados abaixo, extraído do recurso AgRg no REsp 1057337 (2008/0102640-4 - 23/09/2008):
“De outro lado, reafirma-se que o
entendimento ali exposto aplica-se aos autos, isto é, o entendimento de que
"quem já é registrado como mau
pagador não pode se sentir moralmente ofendido pela inscrição do seu nome como
inadimplente em cadastros de proteção ao crédito" (REsp
1.002.985/RS, Rel. Min. ARI PARGENDLER, DJ 27.08.2008). Isto porque, no
presente caso, a consumidora possui protesto e o respectivo registro que,
incluído em 10/04/2003, é anterior aos registros cancelados.
(6) Ademais,
o precedente foi publicado em 27.08.2008, confira-se sua ementa:
CONSUMIDOR. INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES.
DANO MORAL INEXISTENTE SE O DEVEDOR JÁ TEM OUTRAS ANOTAÇÕES, REGULARES, COMO
MAU PAGADOR. Quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir
moralmente ofendido por mais uma inscrição do nome como inadimplente em
cadastros de proteção ao crédito; dano moral, haverá se comprovado que as
anotações anteriores foram realizadas sem a prévia notificação do interessado.
Recurso especial não conhecido. (Resp 1.002.985/RS, Rel. Min. ARI
PARGENDLER, DJ 27.08.2008)”.
Partindo da análise dos fundamentos determinantes, percebe-se que o precedente visa a impedir que o mau pagador obtenha enriquecimento indevido com a restrição indevida. Com efeito, a ratio decidendi do precedente mencionado que engendrou a edição da súmula pode ser identificada neste trecho do julgado: “Quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido por mais uma inscrição do nome como inadimplente em cadastros de proteção ao crédito”.
Entretanto, a aplicação adequada do precedente
judicial em análise depende necessariamente da discussão acerca coincidência ou
não dos fundamentos determinantes com o caso julgado. Essa análise qualitativa
do órgão julgador é fundamental para justificação do uso correto do sistema de
precedentes, principalmente para convencer às partes afetadas do acerto da
hermenêutica aplicada no exercício interpretativo. Partindo dessa premissa passemos
à análise da aplicação deste precedente pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro.
O
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em julgamento recente de recurso
de apelação aplicou a referida Súmula, concluindo pela sua não aplicação, a
saber:
0346559-51.2011.8.19.0001- APELACAO
|
DES. MARCELO LIMA BUHATEM - Julgamento:
31/10/2012 - QUARTA CAMARA CIVEL
DIREITO DO CONSUMIDOR - OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C
DANO MORAL - NEGATIVAÇÃO INDEVIDA - SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA - RECONHECIMENTO
DA INEXISTÊNCIA DA RELAÇÃO JURÍDICA - PEDIDO DE DANO MORAL PROCEDENTE ¿ NÃO
INCIDÊNCIA DO VERBETE 385 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DUAS ANOTAÇÕES
ANTERIORES COM AJUIZAMENTO DE DEMANDAS ANULATÓRIAS - SENTENÇA QUE SE MANTÉM.
1. Demanda contendo pedido de danos morais proposta pela recorrida em face da
recorrente, alegando que teve seu nome inscrito pela demandada em cadastro de
inadimplentes, por dívida que não reconhece. 2. Sentença de procedência,
declarando a inexistência de relação jurídica entre as partes, e julgando
procedente o pedido de dano moral, embora comprovada a existência de outras
anotações em nome do autor. 3. Apelação da demandada, sustentando a
existência de anotações anteriores em desfavor da apelada, o que enseja o
mero dissabor na presente espécie. 4. In casu, afigura-se inequívoca a falha
na prestação do serviço da parte ré, pela indevida inserção do nome da parte
autora nos cadastros restritivos de crédito, que configura a existência do
dano de ordem moral alegado. 5. Ademais, da análise dos autos se verifica que
o recorrente possui duas anotações restritivas de crédito, sendo certo que
são anteriores à restrição que ora é objeto desta ação, datada de 11.10.07.
6. Saliente-se que o questionamento da ilegitimidade destas anotações
precedentes foi comprovada, apesar de o fato ter sido arguido oportunamente
pelo demandado, com o exercício do regular contraditório pela parte autora,
ora recorrente. 7. Pesquisa no sistema processual informatizado desta Corte
que demonstra a existência de ações a discutir a legitimidade dos
apontamentos anteriores, o que caracteriza o dano moral em razão da indevida
inserção do nome do autor-apelante nos cadastros restritivos de crédito. Não
aplicação do verbete nº 385 do S.T.J. 8. Dano moral in re ipsa. Fixação do
quantum em R$ 1.000,00 (mil reais), ora combatida somente pela ré, que à
míngua de recurso autoral deve ser mantida. 9. Quantum fixado que destoa do
meu reiterando entendimento acerca da matéria, sendo certo que em hipóteses
semelhantes adoto por diretriz valor que supera consideravelmente o aqui
alcançado, até em obediência ao caráter pedagógico-punitivo. NEGO SEGUIMENTO
AO RECURSO, COM ESPEQUE NO ART. 557, CAPUT, DO CPC.
|
No julgado acima, o Tribunal do Estado do Rio de Janeiro entendeu que a Súmula 385 não era aplicável na espécie, pois as demais restrições estavam sub judice. Já no julgado abaixo, este mesmo tribunal entendeu ser aplicável a súmula, de certa forma coerente com o julgado anterior, vez que não foi demonstrado a existência de ações judiciais discutindo a ilegalidade das restrições, a saber:
0171513-82.2010.8.19.0001- APELACAO
|
DES. ANA MARIA OLIVEIRA - Julgamento: 30/10/2012 - OITAVA CAMARA CIVEL
Responsabilidade Civil. Ação de indenização por
dano moral que o Autor teria sofrido em decorrência de anotação indevida de
seu nome em cadastro restritivo de crédito, após a quitação das parcelas do empréstimo
contratado com o Réu. Procedência do pedido, confirmando a tutela antecipada
que determinara a exclusão do nome do Autor dos cadastros restritivos de
crédito, e condenado o Réu a pagar indenização por dano moral de R$ 8.000,00.
Apelação do Réu. Apelante não se desincumbiu de demonstrar a legitimidade da
inscrição, o que conduziu, com acerto, à sentença que confirmou a tutela
concedida, na qual foi determinada a baixa das anotações por ele promovidas
em nome do Apelado. Existência de outra inscrição nos cadastros de restrição
de crédito, para a qual não foi comprovado o ajuizamento de ação competente,
não se vislumbrando nexo de causalidade entre a negativação feita pelo
Apelante e o alegado abalo de crédito, impondo-se a aplicação do entendimento
consagrado na Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça. Dano moral não
configurado. Precedentes do TJ/RJ. Reforma da sentença, que impõe o
reconhecimento da sucumbência recíproca, observada quanto ao Apelado a
gratuidade de justiça a ele deferida. Provimento parcial da apelação.
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O que
observamos na metodologia de aplicação do precedente levado a efeito pelo TJRJ,
nesta amostragem, foi a total ausência da verificação da ratio decidendi do precedente que ensejou a súmula para se
verificar sua aplicabilidade ou não. A partir de critérios não muito claros ou
justificáveis, no caso a existência ou não de ações judiciais, o referido Tribunal
de Justiça aplica ou rejeita a aplicação da mencionada súmula.
Desta forma, embora seja funcional, não nos
parece ser mais adequada aplicação dos precedentes sem prévia discussão acerca
dos fundamentos determinantes que ensejaram a formação do precedente judicial.
Por outro lado, o sistema de precedentes, para alcançar seu objetivo maior,
quais sejam, isonomia, segurança jurídica, duração razoável do processo,
prescinde de um sólido conhecimento do sistema de precedentes, como um todo,
bem como partir, sempre, da análise da ratio
decidendi, sob pena de estar mencionando um precedente ou súmula com razões
completamente alheia ou diversa dos fundamentos determinantes que o ensejou.
Para evitar arbitrariedades e até mesmo abusos de
poder importante se faz aprofundar a análise crítica do sistema de precedentes
que se pretende consolidar no país de forma que as reformas realizadas neste
particular não sejam utilizadas tão somente para julgamento célere de conflitos
de massa e repetitivos, reduzindo o excesso de trabalho do Poder Judiciário, em
detrimento de um modelo de processo colaborativo, dialógico e democratizante.
5 – Conclusão
Concluímos
este artigo com uma reflexão sobre as inovações trazidas pelo NCPC acerca do
sistema de precedentes judiciais: De nada adiantará alinhar o processo civil
com as mais refinadas teorias da decisão judicial, criando um sistema misto
entre o Common Law e Civil Law, sem
que haja o estabelecimento de uma cultura jurídica que contemple a lógica colaborativa
e democratizante para formação do precedente judicial.
Existe o sério risco de usarmos o precedente tal
como usamos a lei, apenas mencionando o número do julgado ou súmula, descurando
da análise de seus elementos essenciais que são os fundamentos determinantes (ratio decidendi). Essa deficiência na
aplicação compromete o Distinguishing (critério
da distinção) como também o Overruling
(superação do precedente).
Assim, o NCPC requer não só um profundo conhecimento do sistema de precedentes, mas exige, também uma profunda mudança na forma de ser do próprio processo civil brasileiro e de sua cultura jurídica.
Assim, o NCPC requer não só um profundo conhecimento do sistema de precedentes, mas exige, também uma profunda mudança na forma de ser do próprio processo civil brasileiro e de sua cultura jurídica.
[1] Para melhor compreensão do
sistema de precedentes vide Teoria do
Precedente Judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais
de Thomas da Rosa Bustamante; Precedentes
Obrigatórios de Luiz Guilherme Marinoni; Precedentes Judiciais Civis no
Brasil de Tiago Asfor Rocha; Crítica à
Aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro de Maurício Ramires; Precedentes vinculantes no direito comparado
e brasileiro de Gustavo Santana Nogueira; Direito Jurisprudencial de Teresa Arruda Alvim Wambier
(Coordenadora) entre outros.
[2] Da
anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por
dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao
cancelamento.
[3] AgRg no REsp 1046881/RS, AgRg no REsp1057337/RS, REsp 1002985/RS, REsp 1008446/RS e AgRg no REsp 1081845/RS.
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