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Aplicação do Sistema de Precedentes no Processo Civil Brasileiro: Um estudo de caso

Resumo

            O presente artigo tem como objetivo analisar o sistema de precedentes judiciais inserido no Projeto do Novo Código de Processo Civil e os impactos que esse sistema produzirá em nossa cultura jurídica processual. Atualmente o direito processual brasileiro vem sofrendo fortes influências do direito anglo-saxônico, estabelecendo um sistema híbrido onde tanto o direito codificado como a interpretação jurisprudencial são fontes primárias do direito, como vem ocorrendo com as súmulas vinculantes, repercussão geral, recurso especial por amostragem, entre outros exemplos. Neste sentido, a jurisprudência e as súmulas dos tribunais superiores são formas contemporâneas de dinamizar o direito, permitindo a atualização e funcionalidade do ordenamento jurídico, além de garantir a previsibilidade das decisões e a consequente segurança jurídica. Com efeito, as decisões dos tribunais superiores, especificamente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, são fundamentais, como fontes de referência epistemológica para apreciação e solução dos conflitos levados ao Poder Judiciário, com significativas repercussões em nosso sistema jurídico e que serão encartadas no Novo Código de Processo Civil. Com efeito, o artigo aborda as regras esparsas contidas no Código de Processual Civil atual e através de um estudo de caso analisa como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro vem aplicando e justificando os precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Através de análise qualitativa de acórdãos o estudo reflete sobre a compatibilidade do sistema de precedentes judiciais, originário do common law, com a cultura jurídica brasileira estabelecida a partir do civil law. Considerando que o sistema de precedentes disposto no Projeto do Novo Código de Processo Civil tem como fundamento refinada teoria acerca dos precedentes judiciais, seu adequado funcionamento prescinde de uma correta metodologia de aplicação levado a efeito pelos Tribunais. Assim, o estudo visa, através de análise empírica, identificar qual metodologia de aplicação de precedentes judiciais o tribunal utiliza e se esta é compatível com o sistema de precedentes do Projeto do Novo Código de Processo Civil.

Introdução

            O Projeto 8046/10 da Câmara dos Deputados, que trata do Novo Código de Processo Civil, que tramita sob a relatoria do Deputado Sérgio Barradas, traz inúmeras inovações para o sistema processual brasileiro, adequando o processo brasileiro aos avanços doutrinários e jurisprudências levado a efeito. Desta forma, o Novo Código de Processo Civil somente poderá produzir os resultados esperados se os professores, advogados, juízes e promotores, estiverem sintonizados com os atuais avanços da doutrina, jurisprudência e dos estudos comparados acerca das principais propostas incorporadas ao texto do projeto.
              Um dos temas que requer maior preparo dos operadores do direito é a disposição acerca do sistema de precedentes. O NCPC trata, em detalhes, do sistema de precedentes, regularizando, pormenorizadamente, a aplicação deste sistema que visa uniformizar a jurisprudência dos Tribunais, alinhada com o entendimento dos Tribunais Superiores, garantindo maior isonomia e segurança jurídica. Trata-se de matéria com forte rigor científico, o exige não só técnica apurada para aplicação como também uma cultura jurídica compatível para melhor assimilação da mudança proposta.
 Assim, considerando a importância do sistema de precedentes no NCPC e a necessidade de se compreender adequadamente este sistema para melhor aplicação importante se faz discutir exaustivamente a temática à luz do ordenamento processual vigente que incorpora de forma esparsa o sistema de precedentes. 

1 – Valorização dos Precedentes Judiciais no Direito Processual Civil Brasileiro

A análise do sistema de precedentes judiciais disposto no Projeto do Novo Código de Processo Civil prescinde da reflexão acerca da inclusão deste mecanismo de julgamento no direito processual brasileiro.
Não há dúvida que a demora na prestação da tutela jurisdicional produz efeitos negativos na sociedade abalando, por assim dizer, a própria credibilidade do sistema judiciário. Por outro lado, a falta de estrutura adequada do Poder Judiciário e o alto número de processos judiciais distribuídos mensalmente contribui para a sobrecarga de trabalho e compromete a administração adequada da justiça inviabilizando a prestação da tutela jurisdicional em tempo razoável, nos termos do art.5º, LXXVIII, da Constituição Federal de 1988.
No campo da sociologia, autores como Boaventura Santos (2007), apontam a morosidade sistêmica como um dos principais problemas do sistema de justiça contemporâneo, principalmente no que diz respeito à confiabilidade institucional. Por outro lado, a globalização econômica exige dos países um sistema de justiça rápido, eficiente, que garanta, a um só tempo, segurança jurídica e a previsibilidade dos negócios (Boaventura, 2007).
No campo do direito processual civil, a necessidade de se garantir maior isonomia no tratamento de causas idênticas e mais celeridade no julgamento dos conflitos de massa estimulou a formulação de diversas propostas de reformas para racionalizar a administração da justiça (Marinoni, 2010) garantindo maior celeridade e estabilidade das decisões judiciais.
Diante deste contexto, diversas reformas foram engendradas para se alcançar maior estabilidade jurídica através do fortalecimento dos precedentes judiciais. A Lei 9.756/98 iniciou a inclusão do sistema de precedentes em nosso ordenamento processual ao dar maiores poderes ao Relator nos julgamentos de recursos e incidentes processuais com a nova redação do art. 120, parágrafo único, e o art. 557 (julgamento monocrático), do Código de Processo Civil.
 Diversas outras reformas foram implementadas sistematicamente dentre as quais destacamos a criação da súmula vinculante e a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário no âmbito do Supremo Tribunal Federal, através da Emenda Constitucional 45/2004, o julgamento do Recurso Especial por Amostragem, criado pela Lei 11.672/2008.
Desta forma, o sistema de precedentes judiciais foi estabelecido, paulatinamente, de forma acrítica, pontual e sem o devido aprofundamento da doutrina processual para dar sustentação a aplicação adequada e efetiva do sistema de precedentes na processualística brasileira.
É neste ambiente, social, político e institucional, que o NCPC sistematiza os precedentes judiciais de forma ampla e pormenorizada. Mas para que todos os objetivos propostos sejam atingidos não basta simplesmente promover a alteração legislativa mas, e principalmente, criar condições objetivas e subjetivas para que as alterações sejam compreendidas e apreendidas pelos operadores do direito e, desta forma, seja assimilada pela nossa cultura jurídica processual.

            2 – Sistema de Precedentes no Novo Código de Processo Civil

            O Projeto 8046/10, sob a relatoria do Deputado Sérgio Barradas, aprimorou o sistema de Precedentes transferindo do art. 882, para o art. 483, através da sugestão de Luiz Guilherme Marinoni, sendo incluído no Capítulo da Sentença e Coisa Julgada, na seção denominada “Da eficácia do Precedente Judicial”. Com efeito, a proposta de substitutivo enviado à Câmara em 22/10/2013, aprimora a redação anterior. Assim, o sistema de Precedentes é tratado pelo Projeto nos arts. 520 e 521, conforme transcrição abaixo:
Art. 520. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1º Na forma e segundo as condições fixadas no regimento interno, os tribunais devem editar enunciados correspondentes à súmula da jurisprudência dominante.
§ 2º Ao redigir enunciado de súmula, é defeso ao tribunal estabelecer diretivas que não se atenham às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua edição.
Art. 521. Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia, as disposições seguintes devem ser observadas:
I – os juízes e tribunais seguirão as decisões e os precedentes do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os juízes e os tribunais seguirão os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos e os precedentes em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
III – os juízes e tribunais seguirão os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
IV – não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e tribunais seguirão os precedentes:
a) do plenário do Supremo Tribunal Federal, em controle difuso de constitucionalidade;
b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional;
V – não havendo precedente do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, os juízes e órgãos fracionários de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal seguirão os enunciados de suas respectivas súmulas e, não havendo estes, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem;
VI – os juízes e os órgãos fracionários de tribunal de justiça seguirão, em matéria de direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem.
§ 1º A modificação de entendimento sedimentado poderá realizar-se:
I – por meio do procedimento previsto na Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006, quando tratar-se de enunciado de súmula vinculante;
II – por meio do procedimento previsto no regimento interno do tribunal respectivo, quando tratar-se de enunciado de súmula da jurisprudência dominante;
III – incidentalmente, no julgamento de recurso, na remessa necessária ou na causa de competência originária do tribunal, nas demais hipóteses dos incisos II a VI do caput deste artigo.
§ 2º A modificação de entendimento sedimentado poderá fundar-se, entre outras alegações, na revogação ou modificação de norma em que se fundou a tese ou em alteração econômica, política ou social referente à matéria decidida.
§ 3º A decisão sobre a modificação de entendimento sedimentado poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 4º O órgão jurisdicional que tiver firmado a tese a ser rediscutida será preferencialmente competente para a revisão do precedente formado em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, ou em julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos.
§ 5º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante, sumulada ou não, ou de precedente, o tribunal poderá modular os efeitos da decisão que supera o entendimento anterior, limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo efeitos prospectivos.
§ 6º A modificação de entendimento sedimentado, sumulado ou não, observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 7º O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado.
§ 8º Não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste artigo os fundamentos:
I – prescindíveis para o alcance do resultado fixado em seu dispositivo, ainda que presentes no acórdão;
II – não adotados ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador, ainda que relevantes e contidos no acórdão.
§ 9º O precedente ou jurisprudência dotado do efeito previsto nos incisos do caput deste artigo poderá não ser seguido, quando o órgão jurisdicional distinguir o caso sob julgamento, demonstrando fundamentadamente se tratar de situação particularizada por hipótese fática distinta ou questão jurídica não examinada, a impor solução jurídica diversa.
§ 10. Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
§ 11. O órgão jurisdicional observará o disposto no art. 10 e no art. 499, § 1º, na formação e aplicação do precedente judicial.
Art. 522. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em:
I – incidente de resolução de demandas repetitivas;
II – recursos especial e extraordinário repetitivos.
Parágrafo único. O julgamento de casos repetitivos tem por objeto questão de direito material ou processual.

             Com efeito, esta nova sistemática incorpora a lógica dos precedentes judiciais existentes na Inglaterra e EUA e demais países adeptos Common Law, onde os precedentes são editados, aplicados, revistos e cancelados através da ratio decidendi, obter dicta, distiguishing e overruling
Isso demonstra o alto grau de refinamento teórico e doutrinário proposto pelo projeto, o que demanda um aprimoramento técnico de todos os operadores do direito como também um novo paradigma epistemológico na produção do conhecimento científico no âmbito do processo civil, como também uma ampla reforma no ensino jurídico, pois a nossa cultura jurídica foi forjada no sistema Civil Law[1].
A disposição legal acerca dos precedentes no projeto é exaustiva e contempla todos os institutos necessários ao bom funcionamento do sistema de precedentes, tal como estabelecido na cultura jurídica do Common law. No entanto, a formação dos profissionais do direito necessita, com urgência, de aprimoramento técnico sob pena de trabalharmos com os precedentes judiciais com a lógica interpretativa da hermenêutica do direito codificado.
No intuito de contribuir para melhor compreensão do sistema de precedentes, passamos a analisar, ainda que brevemente, a finalidade de cada instituto do referido sistema.

2.1. Ratio decidendi

           A ratio decidendi, ou as razões de decidir, os fundamentos jurídicos do precedente são fundamentais para aplicação aos demais casos concretos semelhantes ao que gerou o precedente. No NCPC, a disposição acerca da ratio decidendi está no art. 521, §7º, a saber:
§ 7º O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado.

             Os denominados fundamentos determinantes dos precedentes é a base para a identificação do direito aplicado a espécie e o fio condutor para aplicação destes mesmos fundamentos para casos semelhantes. Esta análise da ratio decidendi requer uma nova postura do magistrado no Brasil, que é forjado na lógica da subsunção da lei ao caso concreto.
            Neste sentido, a simples transcrição do verbete sumular ou o número do recurso excepcional que os fundamentos determinantes foram elaborados não é suficiente. É importante compreender que a motivação da decisão disposto no art. 93, X, da CF/88, no sistema de precedentes, prescinde da análise detalhada dos fundamentos determinantes, apontando com clareza as razões pelas quais se está aplicando um precedente e não outro.
 2.2.Obiter dicta
            O obiter dicta corresponde aos fatos envolvidos no caso concreto que ensejou o precedente ou os fundamentos jurídicos que não foram determinantes para formação do entendimento do tribunal. O referido método de julgamento encontra-se no art.521§ 8º, a saber:
§ 8º Não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste artigo os fundamentos:
I – prescindíveis para o alcance do resultado fixado em seu dispositivo, ainda que presentes no acórdão;
II – não adotados ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador, ainda que relevantes e contidos no acórdão.

              Desta feita, os fatos, os fundamentos periféricos ou relevantes, mas que não foram adotados pela maioria não integra o precedente e como tal não deve ser invocado como ratio decidendi para justificar a aplicação do precedente judicial. Trata-se de exercício intelectual importante pois no direito brasileiro essa distinção não é clara ou sistematizada.
2.3. Distinguishing

           O critério da distinção é fundamental para a eficácia do sistema de precedente. Tal método de trabalho visa evitar que o juiz ou tribunal aplique o precedente de forma indistinta, ou seja, sem refletir profundamente se o precedente é aplicável ao caso sub judice. A análise da ratio decidendi, para se verificar se, de fato, os fundamentos determinantes do precedente utilizado podem ou não serem aplicados ao caso concreto.
           A utilização do precedente não é somente citar inúmeros julgados, como fazem os operadores do direito em geral, mas sim justificar a aplicação do precedente a partir de seus fundamentos determinantes. No entanto, quando os fundamentos determinantes não se aplicam perfeitamente à hipótese, o magistrado deve afastar sua aplicação a partir do critério de distinção. O NCPC regula a distinção do precedente no art. 521, § 9º, a saber:
§ 9º O precedente ou jurisprudência dotado do efeito previsto nos incisos do caput deste artigo poderá não ser seguido, quando o órgão jurisdicional distinguir o caso sob julgamento, demonstrando fundamentadamente se tratar de situação particularizada por hipótese fática distinta ou questão jurídica não examinada, a impor solução jurídica diversa.

A distinção é o método de trabalho fundamental para adequada aplicação dos precedentes no direito processual brasileiro, que foi consolidado na cultura jurídica do Civil Law.

2.4. Overruling

           O overruling corresponde à sinalização levada a efeito, tanto por advogados como por juízes, que o precedente não encontra mais amparo no direito brasileiro. Significa o cancelamento ou alteração do precedente.
          Podemos citar como exemplo de overruling o cancelamento da súmula 348 do STJ, que tratava da competência deste tribunal superior para julgamento de conflitos de competência entre um juizado federal e uma vara federal. Este entendimento foi superado pela edição da Súmula 428 do STJ, que define a competência do Tribunal Regional Federal para solução de conflitos de competência entre Juizado Federal e Vara Federal. Essa alteração de posicionamento é denominada de overruling.
Interessante observar que modificação do precedente, no Brasil, é realizada pelo próprio Tribunal sem uma sinalização prévia e sistematizada de forma a garantir a participação de atores outros no processo de modificação. O overruling nos Tribunais Superiores brasileiros é realizado na mudança de entendimento de determinado órgão fracionário ou da mudança na composição da Corte. A modificação do precedente, de forma participativa e com a colaboração das partes, em nosso sentir, é o ponto mais delicado da inclusão formal do sistema de precedentes pois não encontra respaldo na cultura institucional do Poder Judiciário.
No Projeto a sinalização do enfraquecimento ou inaptidão para aplicação está regulada no art. 521, § 1º, a saber:
§ 1º A modificação de entendimento sedimentado poderá realizar-se:
I – por meio do procedimento previsto na Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006, quando tratar-se de enunciado de súmula vinculante;
II – por meio do procedimento previsto no regimento interno do tribunal respectivo, quando tratar-se de enunciado de súmula da jurisprudência dominante;
III – incidentalmente, no julgamento de recurso, na remessa necessária ou na causa de competência originária do tribunal, nas demais hipóteses dos incisos II a VI do caput deste artigo.
§ 2º A modificação de entendimento sedimentado poderá fundar-se, entre outras alegações, na revogação ou modificação de norma em que se fundou a tese ou em alteração econômica, política ou social referente à matéria decidida.
§ 3º A decisão sobre a modificação de entendimento sedimentado poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 4º O órgão jurisdicional que tiver firmado a tese a ser rediscutida será preferencialmente competente para a revisão do precedente formado em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, ou em julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos.
§ 5º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante, sumulada ou não, ou de precedente, o tribunal poderá modular os efeitos da decisão que supera o entendimento anterior, limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo efeitos prospectivos.
§ 6º A modificação de entendimento sedimentado, sumulado ou não, observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

3 - Aplicação do sistema de precedentes no sistema vigente

O objetivo maior desta reflexão é mostrar que o sistema de precedentes não será criado pelo NCPC. O Projeto apenas sistematiza uma mudança paradigmática que vem ocorrendo desde 1998, como já foi dito, quando foi publicada a Lei 9.756/98, que alterou a redação do art. 557 do Código de Processo Civil, possibilitando aos relatores julgar recursos através de decisões monocráticas tendo como base súmula ou jurisprudência dominante do próprio Tribunal ou dos Tribunais Superiores.
Esta alteração legislativa iniciou uma mudança paradigmática que foi aprofundada pela Emenda Constitucional 45 de 2004, que criou a Súmula Vinculante para o Supremo Tribunal Federal.  Outro exemplo de aplicação do sistema de precedentes no ordenamento jurídico processual brasileiro diz respeito à decisão nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ou nas Declarações de Constitucionalidade, onde a decisão terá efeito vinculante para o próprio Pode Judiciário como também os órgãos da administração pública, conforme se concluir da leitura do art. 28, § único da Lei 9.868/99.
             Destarte, o sistema de precedente já é plenamente utilizado em nosso sistema processual sem que uma discussão mais profunda acerca da sua metodologia de aplicação seja plenamente sedimentada na comunidade jurídica. Neste sentido, pretendemos, ainda que modestamente, levar a efeito um exercício de aplicação desta metodologia visando possibilitar ao operador do direito uma aproximação do sistema de precedentes que já está em vigor na processualística brasileira e será levado às últimas consequências no NCPC.
4 – Aplicação do sistema de precedentes: Um estudo de caso

              A análise da aplicação da sistemática dos precedentes em um caso concreto, prática esta que deve ser realizada por todos os operadores do direito, deve ter como base a análise da ratio decidendi, ou seja, os fundamentos determinantes para aplicação dos precedentes bem como a justificação para sua utilização ou não.
Com efeito, considerando que os precedentes judiciais já se encontram devidamente tratados, ainda que não seja de forma sistemática em nosso ordenamento, importante investigar como os Tribunais fundamentam e justificam a utilização dos precedentes dos tribunais superiores em suas decisões, sejam elas monocráticas ou colegiadas. Neste sentido, a aplicação da Súmula 385[2] do STJ no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos permite uma reflexão interessante sobre este tema.
            Antes mesmo de analisar como os precedentes são aplicados, importante se faz compreender como os tribunais superiores formam seus próprios precedentes. No caso em análise, a súmula 385 foi editada tendo como precedentes julgados onde o próprio Superior Tribunal de Justiça, após julgar 05 recursos[3] do Rio Grande Sul, estabeleceu entendimento sobre a matéria em questão extraindo dos julgados a ratio decidendi para se alcançar o entendimento sumulado, conforme fundamentos determinantes apresentados abaixo, extraído do recurso
AgRg no REsp 1057337 (2008/0102640-4 - 23/09/2008):
De outro lado, reafirma-se que o entendimento ali exposto aplica-se aos autos, isto é, o entendimento de que "quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido pela inscrição do seu nome como inadimplente em cadastros de proteção ao crédito" (REsp 1.002.985/RS, Rel. Min. ARI PARGENDLER, DJ 27.08.2008). Isto porque, no presente caso, a consumidora possui protesto e o respectivo registro que, incluído em 10/04/2003, é anterior aos registros cancelados.

(6) Ademais, o precedente foi publicado em 27.08.2008, confira-se sua ementa:

CONSUMIDOR. INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. DANO MORAL INEXISTENTE SE O DEVEDOR JÁ TEM OUTRAS ANOTAÇÕES, REGULARES, COMO MAU PAGADOR. Quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido por mais uma inscrição do nome como inadimplente em cadastros de proteção ao crédito; dano moral, haverá se comprovado que as anotações anteriores foram realizadas sem a prévia notificação do interessado. Recurso especial não conhecido. (Resp 1.002.985/RS, Rel. Min. ARI PARGENDLER, DJ 27.08.2008)”.
 
                 Partindo da análise dos fundamentos determinantes, percebe-se que o precedente visa a impedir que o mau pagador obtenha enriquecimento indevido com a restrição indevida. Com efeito, a ratio decidendi do precedente mencionado que engendrou a edição da súmula pode ser identificada neste trecho do julgado: “Quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido por mais uma inscrição do nome como inadimplente em cadastros de proteção ao crédito”.
Entretanto, a aplicação adequada do precedente judicial em análise depende necessariamente da discussão acerca coincidência ou não dos fundamentos determinantes com o caso julgado. Essa análise qualitativa do órgão julgador é fundamental para justificação do uso correto do sistema de precedentes, principalmente para convencer às partes afetadas do acerto da hermenêutica aplicada no exercício interpretativo. Partindo dessa premissa passemos à análise da aplicação deste precedente pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em julgamento recente de recurso de apelação aplicou a referida Súmula, concluindo pela sua não aplicação, a saber:
0346559-51.2011.8.19.0001- APELACAO
DES. MARCELO LIMA BUHATEM - Julgamento: 31/10/2012 - QUARTA CAMARA CIVEL
DIREITO DO CONSUMIDOR - OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C DANO MORAL - NEGATIVAÇÃO INDEVIDA - SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA - RECONHECIMENTO DA INEXISTÊNCIA DA RELAÇÃO JURÍDICA - PEDIDO DE DANO MORAL PROCEDENTE ¿ NÃO INCIDÊNCIA DO VERBETE 385 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DUAS ANOTAÇÕES ANTERIORES COM AJUIZAMENTO DE DEMANDAS ANULATÓRIAS - SENTENÇA QUE SE MANTÉM. 1. Demanda contendo pedido de danos morais proposta pela recorrida em face da recorrente, alegando que teve seu nome inscrito pela demandada em cadastro de inadimplentes, por dívida que não reconhece. 2. Sentença de procedência, declarando a inexistência de relação jurídica entre as partes, e julgando procedente o pedido de dano moral, embora comprovada a existência de outras anotações em nome do autor. 3. Apelação da demandada, sustentando a existência de anotações anteriores em desfavor da apelada, o que enseja o mero dissabor na presente espécie. 4. In casu, afigura-se inequívoca a falha na prestação do serviço da parte ré, pela indevida inserção do nome da parte autora nos cadastros restritivos de crédito, que configura a existência do dano de ordem moral alegado. 5. Ademais, da análise dos autos se verifica que o recorrente possui duas anotações restritivas de crédito, sendo certo que são anteriores à restrição que ora é objeto desta ação, datada de 11.10.07. 6. Saliente-se que o questionamento da ilegitimidade destas anotações precedentes foi comprovada, apesar de o fato ter sido arguido oportunamente pelo demandado, com o exercício do regular contraditório pela parte autora, ora recorrente. 7. Pesquisa no sistema processual informatizado desta Corte que demonstra a existência de ações a discutir a legitimidade dos apontamentos anteriores, o que caracteriza o dano moral em razão da indevida inserção do nome do autor-apelante nos cadastros restritivos de crédito. Não aplicação do verbete nº 385 do S.T.J. 8. Dano moral in re ipsa. Fixação do quantum em R$ 1.000,00 (mil reais), ora combatida somente pela ré, que à míngua de recurso autoral deve ser mantida. 9. Quantum fixado que destoa do meu reiterando entendimento acerca da matéria, sendo certo que em hipóteses semelhantes adoto por diretriz valor que supera consideravelmente o aqui alcançado, até em obediência ao caráter pedagógico-punitivo. NEGO SEGUIMENTO AO RECURSO, COM ESPEQUE NO ART. 557, CAPUT, DO CPC.
 
              No julgado acima, o Tribunal do Estado do Rio de Janeiro entendeu que a Súmula 385 não era aplicável na espécie, pois as demais restrições estavam sub judice. Já no julgado abaixo, este mesmo tribunal entendeu ser aplicável a súmula, de certa forma coerente com o julgado anterior, vez que não foi demonstrado a existência de ações judiciais discutindo a ilegalidade das restrições, a saber:
0171513-82.2010.8.19.0001- APELACAO

DES. ANA MARIA OLIVEIRA - Julgamento: 30/10/2012 - OITAVA CAMARA CIVEL
Responsabilidade Civil. Ação de indenização por dano moral que o Autor teria sofrido em decorrência de anotação indevida de seu nome em cadastro restritivo de crédito, após a quitação das parcelas do empréstimo contratado com o Réu. Procedência do pedido, confirmando a tutela antecipada que determinara a exclusão do nome do Autor dos cadastros restritivos de crédito, e condenado o Réu a pagar indenização por dano moral de R$ 8.000,00. Apelação do Réu. Apelante não se desincumbiu de demonstrar a legitimidade da inscrição, o que conduziu, com acerto, à sentença que confirmou a tutela concedida, na qual foi determinada a baixa das anotações por ele promovidas em nome do Apelado. Existência de outra inscrição nos cadastros de restrição de crédito, para a qual não foi comprovado o ajuizamento de ação competente, não se vislumbrando nexo de causalidade entre a negativação feita pelo Apelante e o alegado abalo de crédito, impondo-se a aplicação do entendimento consagrado na Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça. Dano moral não configurado. Precedentes do TJ/RJ. Reforma da sentença, que impõe o reconhecimento da sucumbência recíproca, observada quanto ao Apelado a gratuidade de justiça a ele deferida. Provimento parcial da apelação.
O que observamos na metodologia de aplicação do precedente levado a efeito pelo TJRJ, nesta amostragem, foi a total ausência da verificação da ratio decidendi do precedente que ensejou a súmula para se verificar sua aplicabilidade ou não. A partir de critérios não muito claros ou justificáveis, no caso a existência ou não de ações judiciais, o referido Tribunal de Justiça aplica ou rejeita a aplicação da mencionada súmula.
 Desta forma, embora seja funcional, não nos parece ser mais adequada aplicação dos precedentes sem prévia discussão acerca dos fundamentos determinantes que ensejaram a formação do precedente judicial. Por outro lado, o sistema de precedentes, para alcançar seu objetivo maior, quais sejam, isonomia, segurança jurídica, duração razoável do processo, prescinde de um sólido conhecimento do sistema de precedentes, como um todo, bem como partir, sempre, da análise da ratio decidendi, sob pena de estar mencionando um precedente ou súmula com razões completamente alheia ou diversa dos fundamentos determinantes que o ensejou.
Para evitar arbitrariedades e até mesmo abusos de poder importante se faz aprofundar a análise crítica do sistema de precedentes que se pretende consolidar no país de forma que as reformas realizadas neste particular não sejam utilizadas tão somente para julgamento célere de conflitos de massa e repetitivos, reduzindo o excesso de trabalho do Poder Judiciário, em detrimento de um modelo de processo colaborativo, dialógico e democratizante.

5 – Conclusão

Concluímos este artigo com uma reflexão sobre as inovações trazidas pelo NCPC acerca do sistema de precedentes judiciais: De nada adiantará alinhar o processo civil com as mais refinadas teorias da decisão judicial, criando um sistema misto entre o Common Law e Civil Law, sem que haja o estabelecimento de uma cultura jurídica que contemple a lógica colaborativa e democratizante para formação do precedente judicial.
Existe o sério risco de usarmos o precedente tal como usamos a lei, apenas mencionando o número do julgado ou súmula, descurando da análise de seus elementos essenciais que são os fundamentos determinantes (ratio decidendi). Essa deficiência na aplicação compromete o Distinguishing (critério da distinção) como também o Overruling (superação do precedente).
             Assim, o NCPC requer não só um profundo conhecimento do sistema de precedentes, mas exige, também uma profunda mudança na forma de ser do próprio processo civil brasileiro e de sua cultura jurídica.


[1] Para melhor compreensão do sistema de precedentes vide Teoria do Precedente Judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais de Thomas da Rosa Bustamante; Precedentes Obrigatórios de Luiz Guilherme Marinoni; Precedentes Judiciais Civis no Brasil de Tiago Asfor Rocha; Crítica à Aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro de Maurício Ramires; Precedentes vinculantes no direito comparado e brasileiro de Gustavo Santana Nogueira; Direito Jurisprudencial de Teresa Arruda Alvim Wambier (Coordenadora) entre outros.
[2] Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento.

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Em determinada audiência de instrução de julgamento realizada em sede de juizado especial cível, em que tive a oportunidade de atuar como advogado do autor, a representante legal da empresa ré requereu à juíza leiga emenda à contestação para ampliar os argumentos da defesa. Diante da manifestação inusitada, e para mim contrária ao princípio da eventualidade (art. 302 do CPC), me manifestei no sentido da impossibilidade de complementação da contestação, em audiência, em sede de juizados especiais cíveis que tenham processamento eletrônico, considerando que a defesa já foi devidamente apresentada em momento anterior à própria audiência. A insistência da advogada e o silêncio da juíza leiga me motivaram a registar aqui a minha posição sobre o tema, que ainda não teve o devido tratamento na doutrina processual civil. Penso que o processamento eletrônico, inaugurado pela Lei. 11.419/06 impôs séria reflexão sobre institutos processuais consolidados a partir da experiência cotidiana do proce...

Notas sobre audiência de conciliação/mediação

Um processo judicial, em regra, tem como principal característica um conflito de interesses. Por esse motivo, alguns autores conceituavam o processo como uma guerra institucionalizada onde vence a parte que melhor utilizou das “armas” processuais. Essa percepção do processo, como uma estratégia processual, contribuiu para a formação de profissionais do direito voltados mais para o litígio do que para a solução consensual do litígio. Na década de 1980, autores como Mauro Cappelletti deram especial ênfase aos denominados meios alternativos de solução de conflitos, buscando uma justiça coexistencial onde as alternativas de superação da lide são propostas pelas próprias partes e não por um terceiro equidistante. De fato, alguns conflitos não são resolvidos por uma sentença judicial. Imagine a hipótese em que um casal que ainda se ama por algum mal-entendido pretende se divorciar. Neste caso, independente do que o juiz decida num litigio sobre divórcio, o conflito social ainda permanecerá...

ADPF nº 976 E O ACESSO À JUSTIÇA DAS COLETIVIDADES

A decisão proferida na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 976 em 25/07/2023, que trata do Estado de coisas inconstitucional relativa às condições desumanas vivenciadas pelas pessoas em situação de rua, foi um importante passo em relação ao acesso à justiça das coletividades e dos grupos sociais invisibilizados. A medida cautelar concedida proíbe a remoção forçada das pessoas em situação de rua pelos estados, como também impõe medidas para assegurar a dignidade, como prévio aviso sobre mudanças climáticas. A ação foi proposta pela Rede Sustentabilidade, Partido Socialismo e Liberdade e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e conta com a cooperação de diversas entidades da sociedade civil organizada. A instauração do procedimento foi democratizado com a realização de audiência pública em 2022. Trata-se de um problema estrutural que aprofunda as desigualdades no Brasil e demanda uma solução estrutural precedida de um processo decisório amplo e democrático. É, sem dúv...