1 – Introdução
O Estado tem o dever de realizar de
forma eficaz os direitos através do processo. Neste cotejo, diante de direitos
que exijam um tutela diferenciada para ser efetivado, não contemplada pelo
procedimento comum, o Estado deve garantir um procedimento específico com
vistas a alcançar a maior efetividade do processo num prazo razoável. Destarte,
o Código de Processo Civil elenca diversos procedimentos especiais em seu Livro
IV, Título I.
Com efeito, a existência de um
direito material implica, necessariamente, a correlação, no plano do direito
processual, de um procedimento adequado. Não sendo assim, se estaria diante de
uma situação paradoxal pois o direito material seria previsto abstratamente mas
irrealizável concretamente.[1]
A alienação fiduciária de bens
imóveis, regida pela Lei 9.514/97, e móveis, regida pelo Decreto 911/69,
alterado pela Lei nº 10.931/2004, tratam de um direito material específico, de
grande importância social e jurídica ante a sua utilização por grande parcela
da sociedade brasileira. Neste sentido, interessa ao processualista e ao
operador do direito discutir e refletir os procedimentos específicos para
tutelar os direitos elencados nos Diplomas acima mencionados.
Esta breve introdução tem como escopo
demonstrar que o instituto da alienação
fiduciária em garantia, tanto de bens móveis como imóveis, reclama uma
tutela jurisdicional diferenciada para proteger não só os interesses e direitos
do fiduciário (credor) como também do fiduciante (devedor).
2 – Da Alienação Fiduciária em
Garantia de Bens Imóveis
A alienação fiduciária em garantia de
bens imóveis está regulado, como já foi dito, pela Lei 9.514/97, mais
especificamente no art. 22 e seguintes. Trata-se de regulamentação da
propriedade fiduciária em que o imóvel é alienado, fiduciariamente, pelo
devedor (fiduciante) ao credor (fiduciário) até que a dívida seja quitada,
ocasião em resolve-se a propriedade fiduciária do imóvel.
O parágrafo 1º do referido art.22,
acrescentado pela Lei 11.481/07, dispõe que a alienação fiduciária de bem
imóvel poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, demonstrando que
esta não é exclusiva do Sistema Financeiro Imobiliário. Tal alteração ampliou,
sobremaneira, as possibilidades de utilização do instituto.
No que tange aos aspectos
processuais, importa registrar que uma vez realizado o contrato de alienação,
com o respectivo registro no respectivo Registro Geral de Imóveis, o fiduciante
passa a ser possuidor direto e o fiduciário o possuidor indireto, conforme
dispõe o art. 23, parágrafo único da Lei 9.514/97, o que leva a conseqüências
processuais que serão analisadas pormenorizadamente ao longo da exposição.
2.1. Do inadimplemento
Segundo dispõe o art. 26 da referida
lei, vencida a dívida e não paga, no todo ou em parte, após a constituição da
mora, consolidar-se a propriedade do imóvel em nome do fiduciário. Conforme se
depreende do parágrafo 1º do mencionado artigo, para que se constitua em mora a
notificação feita ao fiduciante, para efetuar o pagamento em 15 dias, deve
preencher requisitos como intimação para satisfazer a dívida vencida, e as que
vencerem até a data do efetivo pagamento, juros convencionais, encargos,
tributos, contribuições condominiais, se for o caso.
Tal exigência legal visa permitir ao
fiduciante ter a exata informação acerca do valor devido para que possa efetuar
o pagamento. A inobservância das formalidades legais podem acarretar,
inclusive, a suspensão da execução extrajudicial, conforme se depreende do
julgado, proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
colacionado abaixo:
2009.002.36019 - AGRAVO DE INSTRUMENTO
DES. ANA MARIA OLIVEIRA - Julgamento: 10/11/2009 - OITAVA CAMARA CIVEL
Agravo
de instrumento contra decisão que, em medida cautelar proposta pela Agravada,
deferiu, em parte, a liminar requerida para suspender o leilão extrajudicial de
imóvel objeto de contrato de alienação fiduciária em garantia. Agravada que,
embora admita a inadimplência quanto às prestações do contrato celebrado entre
as partes, aponta que não teriam sido observadas as formalidades necessárias
para sua constituição em mora. Alienação do imóvel que poderá tornar ineficaz
eventual decisão favorável à Agravada, afigurando-se prudente a manutenção da
decisão agravada que não se mostra teratológica, contrária à lei ou à prova dos
autos. Desprovimento do agravo de instrumento.
Um primeiro aspecto processual a ser
observado é a possibilidade de se suspender o leilão extrajudicial do imóvel ou
a mesmo torná-lo ineficaz através de uma medida cautelar ou Mandado de
Segurança, vez que se trata de um direito líquido e certo.
2.2. Da Execução Extrajudicial do
imóvel
Transcorrido o prazo para a purgação
da mora, sem o efetivo pagamento, o Oficial do Registro Geral do Imóvel
promoverá a averbação da consolidação da propriedade em nome do fiduciário.
Importante ressaltar que o fiduciário, em regra, deve alienar o imóvel para
satisfação de seu crédito, o que será feito através da execução extrajudicial,
vez que o art. 1.428 do Código Civil de 2002 proíbe o fiduciário de ficar com a
coisa imóvel pois esta tem o escopo de garantia.
Assim, o fiduciário deve, em 30 dias,
conforme o art. 27, promover o leilão público do imóvel, iniciando a execução
extrajudicial do bem. Tal procedimento é muito polêmico pois, segundo parte da
jurisprudência, a Lei 9.514/97 é inconstitucional pois permite que o fiduciante
perca o bem sem a observância do devido processo legal e o contraditório,
ferindo frontalmente o art. 5º, LIV e LV, da Constituição Federal de 1988.
No entanto, segmento da
jurisprudência entende que não há afronta a Constituição Federal pois o
fiduciante poderá ingressar em juízo onde será garantido a ampla defesa e o
contraditório. Este entendimento foi sustentado no julgamento unânime do Agravo
de Instrumento nº 880.879-0, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
vejamos:
“Alienação Fiduciária
de imóvel. Lei nº 9.514/97. Ação de Reintegração de posse. Inteligência dos
artigos 26 a 30. Inconstitucionalidade. Inocorrência. Código de Defesa do
Consumidor.”
“Observando-se,
com rigor, os artigos a 30 da Lei nº 9.514/97 e consolidada a propriedade
fiduciária em nome do credor, assegura-lhe a lei o direito à concessão liminar
de reintegração de posse do imóvel, que deverá ser desocupado no prazo de 60
dias. A previsão do leilão extrajudicial e consolidação da propriedade
fiduciária em nome do credor por ato do registrador imobiliário não afronta a
Constituição Federal, já que o acesso ao Judiciário, a ampla defesa e o
contraditório continuam assegurados ao devedor que se sentir prejudicado.
Agravo improvido.”
Percebe-se nos argumentos esposados
acima um certo desvio do cerne da questão. A alegada inconstitucionalidade
encontra-se na possibilidade do fiduciante perder o imóvel sem o devido
processo legal e não a garantia do acesso à justiça após a alienação do bem,
conforme se depreende dos argumentos apresentados no aresto.
Entendemos que a execução
extrajudicial afronta o texto constitucional pois o fiduciante perde o imóvel
sem o devido processo legal, ampla defesa e o contraditório, e ainda assegura o
direito a reintegração de posse ao fiduciário, conforme dispõe o art. 30, que obterá a liminar para ingressar no imóvel
no prazo de 60 dias.
Com efeito, ao fiduciante cabe
somente se defender nos autos da ação de Reintegração de Posse ou imissão na
posse, após o imóvel ter sido alienado. Neste sentido entendemos que a referida
é inconstitucional no que concerne a execução extrajudicial.
Se utilizarmos como paradigma o
procedimento nas hipóteses de alienação fiduciária de bens móveis, percebe que,
a despeito do art. 2º do Decreto 911/69 autorizar a venda no caso de
inadimplemento, na prática a alienação do bem em leilão público se dá após o
estabelecimento do contraditório e da ampla defesa, conforme dispõe o art.
3º§3º do mencionado decreto. Não há dúvida que a execução extrajudicial de bem
imóvel viola garantias constitucionais do fiduciante.
2.3. Da Reintegração de posse
Consoante inteligência do art. 30,
após a consolidação da propriedade em nome do fiduciário, a assegurado a este,
como também aos seus sucessores ou adquirentes em leilão público, a
reintegração de posse. Segundo o referido dispositivo, será concedida liminar
para desocupação do bem no prazo de 60 dias pelo fiduciante.
Neste sentido a lei é coerente e
sistêmica pois conforme dispõe o parágrafo único do art. 23, o fiduciário é
possuidor indireto da coisa imóvel e, desta feita, o procedimento especial
adequado a este direito material é o procedimento da Reintegração de Posse.
É neste momento que se inicia para o
fiduciante o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Como
cediço, nesta fase o fiduciante, requerido na demanda possessória, já perdeu o
bem dado em garantia, o que para nós é inconstitucional, como já foi
sustentado.
2.4.Da locação do bem imóvel alienado
fiduciariamente
O art. 27, §7º da Lei 9.515/97 reza
que se o imóvel alienado fiduciariamente estiver locado o fiduciário poderá
denunciar a locação para que o imóvel seja desocupado em 30 dias. Caso haja a
aquiescência por escrito do fiduciário, a denúncia deverá ser realizada
concedendo o prazo de 90 dias para a desocupação.
O aspecto processual surge após o
decurso dos referidos prazos sem que haja a desocupação. Na primeira hipótese,
quando não há aquiescência do fiduciário, a via processual adequada é a
Reintegração de Posse, vez que o fiduciário não integra a relação obrigacional
fixada no contrato de locação. Na segunda hipótese, em que há a aquiescência do
fiduciário, a via processual adequada é a ação de despejo, com fulcro no art.
5º da Lei de Locações.
3. Da Alienação Fiduciária em Garantia
de Bens Móveis
A Alienação fiduciária de bens móveis
é regida pelo Decreto 911/69, com redação alterada pela Lei n. 10.931/2004.
Trata-se de instituto de grande utilização, principalmente no mercado
automobilístico. No entanto, os casos de inadimplemento nos contratos de
alienação fiduciária de bens móveis provoca interessantes discussões no âmbito
processual.
O art. 2°, §2° do Decreto dispõe que
a mora poderá ser comprovada através de Carta Registrada expedido pelo
competente Cartório de Títulos e Documentos. Uma vez caracterizada a mora e o
inadimplemento, serão consideradas vencidas, de pleno direito, todas as
obrigações contratuais.
Neste cotejo, surge para o fiduciário
o direito de ajuizar ação de busca e apreensão do bem alienado cuja liminar
será concedida incontinenti, desde que seja comprovada a mora. Após o decurso do prazo de cinco dias
contados a partir da execução da liminar consolidar-se-á a propriedade e a
posse plena e exclusiva do bem alienado fiduciariamente, conforme art.3°,§1º,
do Decreto.
Com efeito, o devedor fiduciante
poderá apresentar sua resposta no prazo de 15 dias (art. 3°, §3º), onde poderá
apresentar defesas diretas e indiretas de mérito além das defesas processuais.
Tal artigo representa um avanço no que tange a garantia da ampla defesa e do
contraditório, pois antes da Lei 10.931/2004, que determinou a redação do
mencionado dispositivo, o fiduciante estava limitado a purgar a mora.
A polêmica estabelecida em relação ao
procedimento da ação de busca e apreensão centrava-se nas hipóteses em que o
bem alienado não era encontrado ou encontrava-se na posse de terceiros. Segundo
o art. 4º do Decreto, o fiduciário pode requerer a conversão da ação de busca e
apreensão em ação de depósito, regido pelos arts. 901 a 906 do Código de
Processo Civil. Percebe-se que a conversão do procedimento da ação de busca e
apreensão para o procedimento da ação de depósito poderia acarretar a prisão do
fiduciante como depositário infiel.
O Supremo Tribunal Federal sustentou
durante longo período a constitucionalidade da prisão do depositário infiel editando,
inclusive, a Súmula 619 cujo teor é o que segue:
“A prisão do
depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se
constituiu o encargo, independentemente da propositura da ação de depósito.”
Por sua vez, o Superior Tribunal de
Justiça sempre se posicionou no sentido de não admitir a prisão do depositário
infiel pois consolidou o entendimento de que o Pacto São José de Costa possui
estatura de norma constitucional e, portanto, a prisão do depositário é
inconstitucional[2].
Importante dizer que o Supremo
Tribunal Federal se posicionou no sentido da constitucionalidade do art.5º,
LXVII, da CF/88, pois o mencionado Pacto ingressa no ordenamento jurídico como
norma infraconstitucional.
Destarte, a Emenda Constitucional 45
de 2004 contribuiu para a mudança gradual da jurisprudência neste sentido. A
referida emenda acrescentou o §3° ao art. 5° cuja redação é a seguinte:
“Os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.”
A discussão aprofundou-se no sentido
de considerar inconstitucional a prisão do depositário infiel, sobretudo nos
casos de alienação fiduciária, o que levou o STF a rever a sua posição. A
virada jurisprudencial do STF provocou a edição da Súmula Vinculante n° 25 cuja
redação é a seguinte:
“É
ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de
depósito.”
Assim, a grande polêmica acerca da
prisão do depositário infiel nos casos de Alienação Fiduciária foi dissipada
pelo próprio amadurecimento jurisprudencial.
4. Da aplicação do Código de Defesa
do Consumidor aos Contratos de Alienação Fiduciária de Bens Imóveis e Móveis.
Neste sentido, é pacífico, conforme
entendimento do Supremo Tribunal Federal, exarado na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 2.591-1, onde a Supremo Corte entendeu que é
constitucional a aplicação do CDC às Instituições Financeiras. Por outro lado,
e na mesma direção, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 297 cujo
teor é o que segue:
“O
Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”
A aplicabilidade desta interpretação
ganha relevo ao se fazer incidir nos contratos de alienação fiduciária a regra
disposta no art. 53 do Código de Defesa do Consumidor. O referido dispositivo
garante ao fiduciante a devolução dos valores pagos nos casos de inadimplemento
que ocasione a resolução do contrato e a retomada do bem alienado, conforme se
transcreve:
“Nos contratos de
compra e venda de móveis e imóveis mediante pagamento em prestações, bem como
nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as
cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do
credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a
retomada do produto alienado.”
Assim, diante da perda do bem
alienado em decorrência do inadimplemento, o fiduciante pode pleitear em juízo
a devolução das parcelas pagas, conforme o mencionado dispositivo legal.
5. Conclusão
O objetivo deste breve artigo é
discutir e apontar alguns aspectos processuais do Contrato de Alienação
Fiduciária de Bens Móveis e Imóveis com a finalidade de demonstrar a
importância da tutela jurisdicional diferenciada para concretizar o direito
material garantido de forma abstrata.
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