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Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto do Novo Código de Processo Civil: Primeiras considerações

A efetividade do processo sempre foi alvo de preocupações dos processualistas de todas as gerações. O princípio da tempestividade foi inserido na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, LXXVIII, através da Emenda Constitucional nº 45/2004, é uma evidência da preocupação com a duração dos processos e, como consequência, da própria efetividade do processo.

Nesta esteira, várias reformas processuais foram implementadas para se alcançar um processo célere e com um grau máximo de efetividade. A criação do instituto da tutela antecipada, inserida em nosso ordenamento pela Lei 8.952/94 (art. 273 do CPC), é uma clara demonstração da busca pela efetividade do processo. A sentença liminar, inserida em nosso ordenamento processual pela Lei 11.277/06, que criou o art. 285-A do CPC, também evidencia a preocupação do legislador em se alcançar um processo célere e efetivo.

No entanto, a presença de um componente sociológico deve ser considerada nesta análise. A criação de instrumentos e estatutos que visam ampliar o acesso à justiça, como o Código de Defesa do Consumidor, os Juizados Especiais Cíveis, Estatuto do Idoso entre outros institutos viabilizaram uma ampla conscientização dos direitos por parte da sociedade civil organizada, como também dos cidadãos, repercutindo no aumento das demandas levadas ao Poder Judiciário.

Com efeito, a preocupação dos processualistas não está mais centrada na efetividade ou no acesso à justiça, mas, sobretudo, como dar conta dos conflitos de massa que caracterizam as sociedades contemporâneas. É muito comum, atualmente, um vício em determinado produto ou a identificação de uma cláusula contratual abusiva para que sejam distribuídas milhares de petições iniciais versando sobre matérias idênticas no Poder Judiciário.

A questão central que permeiam as reflexões acerca da efetividade no direito processual civil é a solução dos conflitos de massa. O incidente de solução de Demandas Repetitivas é uma medida que visa superar este problema da sociedade contemporânea.

2 - Mecanismos processuais para solução de conflitos de massa no atual Código de Processo Civil

As reformas do Código de Processo Civil foram realizadas com o escopo de se alcançar a solução rápida e efetiva dos conflitos de massa. À guisa de exemplo podemos citar a possibilidade de inadmissão da apelação na origem através da súmula impeditiva de recurso (art. 518§ 1º); as decisões monocráticas no julgamento de recursos (art. 557); a sentença liminar (art. 285-A) entre outros.

Ainda no âmbito recursal podemos inserir a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário (Lei 11.418/06) e a Súmula Vinculante inseridos em nosso sistema com a Emenda Constitucional n°45/ 2004, como também o julgamento dos Recursos Especiais por amostragem, inserido em nossa sistemática pela Lei 11.672/ 08, que tratam de julgamentos em série pelos Tribunais Superiores (STF e STJ).

A despeito da existência dos referidos mecanismos processuais estes vem se mostrando insuficiente, ante ao grande número de demandas que são distribuídas ao Pode Judiciário. O incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, num primeiro momento, visa a superar este suposto déficit processual no que tange á solução de demandas repetidas.
 
3 - Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto do Novo Código de Processo Civil.

O Projeto do novo Código de Processo Civil, que está tramitando na Câmara dos Deputados sob o n° 8046/10,tem como um dos objetivos principais tornar o Processo Civil mais célere, efetivo, e com o mínimo de incidentes possíveis, possibilitando uma rápida prestação da tutela jurisdicional.

Tal perspectiva pode se percebida na Exposição de Motivos do Anteprojeto através da seguinte passagem:

Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade reconhecimento e realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa carecer de efetividade.”

Com efeito, a busca da harmonia entre a Constituição Federal de 1988 e o Código de Processo Civil ensejou a inclusão de diversos princípios constitucionais no Código como também reduzisse os incidentes visando alcançar um processo que seja efetivo e com uma duração razoável.

Nesta esteira foi inserido no projeto o Instituto de Resolução de Demandas Repetitivas cuja redação provisória é a seguinte:
 
Art. 930. É admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes.”

Conforme se depreende da leitura do mencionado artigo,os requisitos para a instauração do incidente são controvérsia com potencial de gerar multiplicação de processos com idêntica questão de direito e risco de decisões conflitantes.
 
Com efeito, concluímos, através de interpretação teleológica, que o instituto visa a eliminar multiplicidade de processos idênticos e garantir maior segurança jurídica.

A legitimidade para instauração do incidente é conferida às partes, ao Ministério Público, à Defensoria Pública, através de petição, e ao juiz ou o relator de ofício (art. 930 do NCPC).

A Competência para admissibilidade, processamento e julgamento do Incidente será do Órgão Especial ou do Pleno, nos Estados que não possuem Órgão Especial, conforme dispõe o art. 933 do NCPC.

O procedimento do incidente inicia-se com a distribuição do incidente e com a nomeação de um relator. O relator solicitará informações ao órgão em cujo juízo tem curso o processo originário, que terá 15 dias para apresentá-las. Após o Ministério Público será intimado. É evidente que a intimação do Ministério Público será dispensada quando este for autor do Incidente.

Conforme o art. 933, §2º, do NCPC, se o incidente não for admitido, os processos idênticos terão o curso retomado. Admitido o incidente o relator determinará, na mesma sessão, a suspensão de todos os processos em curso (art. 934 do NCPC) e, após o julgamento da questão de direito seu teor “será” observado por todos os juízes e órgãos fracionários.

Trata-se de uma Súmula Vinculante editada no âmbito dos Tribunais, conforme se depreende do art. 938 do NCPC. Caso haja a interposição de Recurso Extraordinário e/ou Recurso Especial, a decisão dos Tribunais Superiores vinculará todos os Tribunais da Federação, conforme interpretação literal do parágrafo único do art. 938 do NCPC.

Art. 938...”

Se houver recurso e a matéria for apreciada, em seu mérito, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal ou pela corte especial do Superior Tribunal de Justiça, que respectivamente, terão competência para decidir recurso extraordinário ou especial originário do incidente, a tese jurídica firmada será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito e que tramitem em todo território nacional.”
 
Diante da repercussão da decisão exarada em IRDR o NCPC viabiliza a participação dos interessados na condição de Amicus Curiae, no prazo de 15 dias, conforme art. 935 do NCPC.
 
Percebe-se uma nítida intenção do NCPC em valorizar o sistema de precedentes ao criar o IRDR. Após o julgamento do incidente não só os Tribunais locais estarão vinculados à tese fixada como também os juízes de primeiro grau deverão rejeitar a petição inicial contrária à tese fixada no IRDR, conforme dispõe o art. 307, III, do NCPC.

Desta forma, o incidente poderá ser usado não só para julgar demandas repetitivas em curso, como também a conflitos potenciais, viabilizando um sistema de precedentes antes mesmo do conflito de massa ser engendrado de fato.

Conclusão

É evidente que o instituto de origem alemã poderá contribuir para a solução de demandas repetitivas, conforme se verifica no NCPC. No entanto a efetividade não é um conceito unívoco concernente somente à celeridade, mas um corolário, também do acesso á ordem jurídica justa, que contempla o acesso e a apreciação das demandas levadas a juízo.

O instituto mal operado na prática pode ocasionar violações ao amplo acesso à justiça, considerando que as decisões exaradas em Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas autorizarão a improcedência liminar do pedido autoral através de rejeição liminar da inicial.

A garantia do contraditório e da democratização do processo no julgamento do incidente será fundamental para se garantir o acesso à ordem jurídica justa, princípio constitucional que não pode ser preterido pela segurança jurídica ou pela redução dos trabalhos do Pode Judiciário.

É uma primeira reflexão que será seguida por outras com maior aprofundamento teórico e empírico.

 

 

 

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