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Inversão do ônus da prova e teoria carga dinâmica no Processo Civil


O processo civil tem como escopo garantir a tutela jurisdicional tempestiva e efetiva aos jurisdicionados através da sentença de mérito. Com efeito, a atividade jurisdicional se desenvolve para verificar qual alegação, a do autor ou do réu, que parece mais verossímil através das provas que foram apresentadas pelas partes.

Neste sentido, as provas, no processo civil, constituem uma dimensão importante da processualística, pois é através do acervo probatório produzido pelas partes que o juiz se convence da veracidade, ou não, de uma determinada alegação, julgando procedente ou improcedente o pedido do autor.

Trata-se de uma mudança de perspectiva, pois a atividade do juiz não tem mais como escopo a busca da verdade real dentro do processo, mas sim a verificar qual alegação foi devidamente provada pelas partes. Desta feita, a atividade probatória ganho especial relevo na sistemática processual.
 
Por outro lado, a própria postura do juiz ao conduzir a atividade probatória foi sensivelmente alterada deixando de ser passiva para ser mais ativa, pois o juízo é o destinatário mesmo da atividade probatória. Tal mudança decorre da releitura do art. 130 do Código de Processo Civil, sob a ótica constitucional.
 
Conforme diz o referido artigo: “Caberá o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias”. Esta norma, inserida em nosso ordenamento processual em 1973, vem sofrendo uma interpretação constitucional onde se identifica a necessidade de uma postura mais ativa do juiz não só deferindo ou indeferindo provas, mas, principalmente, determinando produção de provas de ofício para melhor se convencer da existência ou não de determinado fatos.
 
Neste sentido, não há que se falar em parcialidade do juiz, quando este determinar de ofício produção de determinada prova, pois necessidade de convencimento do órgão julgador autoriza esta postura ativa do juiz. Com efeito, a instrução probatória deixou de ser regra de atividades das partes, com o juiz passivo, para ser regra de julgamento, onde o juiz precisa se convencer sobre a existência ou não de um fato podendo, para tanto, determinar a produção de determinadas provas de ofício.

Esta nova concepção da atividade probatória vem sendo denominada de poderes instrutórios do juiz, conceito elaborado por autores como José Roberto Bedaque dos Santos, e recepcionado pela jurisprudência conforme julgado do Superior Tribunal de Justiça abaixo:
 
Os juízos de 1º e 2º graus de jurisdição, sem violação ao princípio da demanda, podem determinar as provas que lhes aprouverem, a fim de firmar seu juízo de livre convicção motivado, diante do que expõe o art. 130 do CPC. A iniciativa probatória do juiz, em busca da verdade real, com realização de provas de ofício, é amplíssima, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça”. (STJ, REsp 1012306/PR, 3ª T., 28.04.2009, rel. Min. Nancy Andrighi).
 
Diante destas mudanças de paradigmas epistemológicos, pretendemos abordar alguns temas polêmicos e inovadores sobre o ônus da prova dentro da sistemática da processualista contemporânea voltada para um processo célere e justo.
 
2- Inversão do ônus da prova
 
O Código de Processo Civil de 1973 adotou o sistema de ônus subjetivo da prova disposto no art. 333 do Código de Processo Civil. Diante da mencionada norma ao autor caberá provar o fato constitutivo de seu direito e ao réu caberá provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor. O ônus da prova é distribuído entre as partes.
 
Neste sistema, o juiz observa a atividade das partes e, ao final, julga de acordo com a prova produzida pelas partes de acordo com o ônus distribuído pelo art. 333 do Código de Processo Civil. Neste sistema, se o réu somente negar o fato constitutivo do direito do autor o ônus subjetivo da prova será devolvido ao autor.
 
Este sistema produz desigualdades na dialética processual, pois não raramente o autor, por diversos motivos, não consegue provar a contento o fato constitutivo de seu direito e, como consequência, pode ter seu pedido julgado improcedente pelo órgão julgador.

A primeira mudança legislativa no sentido de superar a desigualdade provocada pelo ônus subjetivo da prova foi a inversão do ônus da prova estabelecida no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. Esta inovação processual não rompe, ainda, com a sistemática do ônus subjetivo da prova mas, tão somente, inaugura uma importante exceção nos casos de hipossuficiência técnica do consumidor para produção de determinada prova e da verossimilhança da alegação.
 
É uma inversão ope judicis, pois caberá ao juiz, se convencer da hipossuficiência técnica do consumidor e da verossimilhança da alegação deferir ou indeferir a inversão do ônus da prova. Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro editou a Súmula 227, que trata da possibilidade de revisão, pelo tribunal, da decisão que deferiu ou indeferiu a inversão do ônus da prova.
 
Importante trazer à colação o texto da mencionada súmula:
 
DIREITO DO CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. DECISÃO CONCESSIVA OU DENEGATÓRIA. REFORMA DA DECISÃO. CONDIÇÃO EXIGIDA. EXIGÊNCIA DE TERATOLOGIA. A decisão que deferir ou rejeitar a inversão do ônus da prova somente será reformada se teratológica.”
 
Numa primeira análise, não concordamos com o teor da referida súmula, pois a análise dos requisitos para inversão do ônus da prova possui intensa carga de subjetividade do julgador o que torna passível de error in judicando, não teratológicos, que pode prejudicar a melhor instrução da causa.
 
3 – Momento para inversão do ônus da prova
 
Outro aspecto que gera muita polêmica acerca da inversão do ônus da prova na relação de consumo concerne ao momento processual adequado para inverter o ônus probatório. A dúvida perpassa a atividade judicial ocorrendo inúmeros casos em que o juiz inverte o ônus da prova no momento de proferir sentença. Quando a inversão é deferida neste momento, inviabiliza-se, por completo, o contraditório e a ampla defesa.
 
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro editou a Súmula 91 delimitando com clareza o momento processual para a inversão do ônus da prova, a saber:
 
DIREITO DO CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. DETERMINAÇÃO NA SENTENÇA. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. A inversão do ônus da prova, prevista na legislação consumeirista, não pode ser determinada na sentença.”
 
O Superior Tribunal de Justiça uniformizou o entendimento no sentido de que o momento processual adequado é a decisão saneadora, possibilitando o amplo e adequado contraditório. Tal entendimento está bem fundamentado na ementa do julgado abaixo:
 
INVERSÃO. ÔNUS. PROVA. CDC.
Trata-se de REsp em que a controvérsia consiste em definir qual o momento processual adequado para que o juiz, na responsabilidade por vício do produto (art. 18 do CDC), determine a inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do mesmo codex. No julgamento do especial, entre outras considerações, observou o Min. Relator que a distribuição do ônus da prova apresenta extrema relevância de ordem prática, norteando, como uma bússola, o comportamento processual das partes. Naturalmente, participará da instrução probatória com maior vigor, intensidade e interesse a parte sobre a qual recai o encargo probatório de determinado fato controvertido no processo. Dessarte, consignou que, influindo a distribuição do encargo probatório decisivamente na conduta processual das partes, devem elas possuir a exata ciência do ônus atribuído a cada uma delas para que possam produzir oportunamente as provas que entenderem necessárias. Ao contrário, permitida a distribuição ou a inversão do ônus probatório na sentença e inexistindo, com isso, a necessária certeza processual, haverá o risco de o julgamento ser proferido sob uma deficiente e desinteressada instrução probatória, na qual ambas as partes tenham atuado com base na confiança de que sobre elas não recairia o encargo da prova de determinado fato. Assim, entendeu que a inversão ope judicis do ônus da prova deve ocorrer preferencialmente no despacho saneador, ocasião em que o juiz decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento (art. 331, §§ 2º e 3º, do CPC). Desse modo, confere-se maior certeza às partes referente aos seus encargos processuais, evitando a insegurança. Com esse entendimento, a Seção, ao prosseguir o julgamento, por maioria, negou provimento ao recurso, mantendo o acórdão que desconstituiu a sentença, a qual determinara, nela própria, a inversão do ônus da prova. Precedentes citados: REsp 720.930-RS, DJe 9/11/2009, e REsp 881.651-BA, DJ 21/5/2007. REsp 802.832-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 13/4/2011.

 
Nos Juizados Especiais Cíveis, nos parece mais adequado para inversão do ônus da prova no despacho positivo do juiz, ao receber a inicial ou, na impossibilidade, na audiência de instrução e julgamento, nos termos do art. 29 da Lei 9.099/95.
 
4 – Teoria da Carga Dinâmica ou Ônus objetivo da prova
 
A sistemática da distribuição do ônus da prova em nosso ordenamento processual tem como regra geral a distribuição subjetiva da prova, nos termos do art. 333 do Código de Processo Civil, e como regra específica a inversão do ônus da prova nas relações de consumo, nos casos de hipossuficiência técnica e verossimilhança da alegação, nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor.

Um aspecto que vem sendo amadurecido tanto em doutrina como na jurisprudência é a objetivação do ônus da prova. Partindo da reflexão acerca do acesso à ordem jurídica justa e ao processo de resultados efetivos, que não são compatíveis com a distribuição subjetiva do ônus da prova, estabeleceu-se a denominada teoria da carga dinâmica do ônus da prova.
 
Trata-se da superação do ônus subjetivo da prova e o estabelecimento de um ônus objetivo, no sentido que o ônus da prova será distribuído pelo juiz de acordo com a parte que tem mais condições de trazer provas para os esclarecimentos dos fatos postos em juízo.
 
A objetivação do ônus da prova é uma moderna concepção da teoria geral da prova e atende ao processo civil contemporâneo, de cunho fortemente constitucional, que valoriza a isonomia, o devido processo legal.

Essa teoria vem sendo aplicada constantemente pelos nossos Tribunais, em especial o Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, conforme ementário abaixo:

DES. REGINA LUCIA PASSOS - Julgamento: 09/07/2012 - DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL
Apelação Cível. Ação Indenizatória. Direito Civil e Processual Civil. Imputação de prática de furto. Suspeita infundada. Ato ilícito que gera o dever de indenizar. Preliminar de incompetência da Justiça Estadual rechaçada. Relação que não apresenta qualquer vínculo trabalhista, pelo que não há que se falar em competência da Justiça do Trabalho. Parte ré que não logrou êxito em comprovar que houvesse justificativa plausível para sua atuação. Ônus que a ela incumbia em razão da adoção da Teoria da Carga Dinâmica da Prova. Estabelecimento comercial de grande porte, com sistema de segurança próprio, para o qual seria mais fácil a demonstração do alegado furto. Impossibilidade de imputar ao autor a realização de prova negativa. Evento que ultrapassa o mero aborrecimento cotidiano. Autor que foi colocado em situação vexatória, que produziu sentimentos de humilhação. Verba fixada em R$ 10.000,00 que se revela proporcional ao caso concreto. Manutenção. Honorários advocatícios fixados no valor equivalente a 10% do valor da condenação que se mostram compatíveis com os requisitos do § 3º do art. 20 do CPC. Precedentes citados: 0009221-63.2009.8.19.0203 - APELAÇÃO DES. CARLOS SANTOS DE OLIVEIRA - Julgamento: 13/12/2011 - NONA CÂMARA CÍVEL; 0052591-22.2010.8.19.0021 - APELAÇÃO DES. HELENO RIBEIRO P NUNES - Julgamento: 10/05/2011 - DECIMA OITAVA CÂMARA

DES. CELSO PERES - Julgamento: 04/07/2012 - DECIMA CAMARA CIVEL
Plano de saúde coletivo contratado por empregador. Pleito de manutenção da qualidade de segurado. Empregado demitido sem justa causa. Cumprimento dos requisitos legais. Exegese do artigo 30 da Lei n.º 9.656/98. Natureza atuarial da contribuição reforçada pela Resolução 20/99 do CONSU. Parte ré que não logrou êxito em comprovar o caráter não contributário do contrato em questão, à luz da teoria da carga dinâmica das provas. Prova documental suficiente a amparar a tese autoral. Sentença de procedência que merece pequeno retoque, apenas para delimitação do prazo de cobertura contratual ao mínimo legal, na forma do §1º do artigo 30 da legislação de regência. Apelo parcialmente provido.

DES. LUCIA MIGUEL S. LIMA - Julgamento: 03/07/2012 - DECIMA SEGUNDA CAMARA CIVEL
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. PEDIDO DE EXIBIÇÃO EXTRATOS PELO ESTABELECIMENTO BANCÁRIO. APLICAÇÃO DA TEORIA DA CARGA DINÂMICA DA PROVA. POSSIBILIDADE. Uma vez comprovada a titularidade da poupança, pode o poupador formular pedido para que a Instituição financeira apresente os extratos de conta-poupança no próprio bojo do processo de conhecimento. Vê-se bem que esta Corte, na esteira do pensamento do STJ, já sedimentou ser devida a apresentação dos extratos de conta-poupança pela instituição financeira, levando em conta o disposto no artigo 355 do CPC através da aplicação da moderna teoria da carga dinâmica da prova.Precedentes do TJ/RJ e do STJ. PROVIMENTO DO RECURSO. DESPROVIMENTO DO REGIMENTAL.
Com efeito, a aplicação adequada da objetivação do ônus da prova depende da sensibilidade e ponderação do julgador para distribuição dinâmica sem violar os princípios da ampla defesa e do contraditório.
 
5 – Objetivação do ônus da prova no Projeto do Novo Código de Processo Civil.
 
O Projeto 8046/10, que tramita na Câmara dos Deputados, dispõe sobre a carga dinâmica da prova em seu art. 358, que dispõe o seguinte:
 
Considerando as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser provado, o juiz poderá, em decisão fundamentada, observando o contraditório, distribuir de modo diverso o ônus da prova, impondo-o a parte que estiver em melhores condições de produzi-la.”
 
Parágrafo Primeiro: “Sempre que o juiz distribuir o ônus da prova de modo diverso do art. 357, deverá dar à parte oportunidade para o desempenho adequado do ônus que lhe foi atribuída.”
 
O Novo Código de Processo Civil, nesta temática, andou bem em positivar a objetivação do ônus da prova, visando, por assim dizer, o estabelecimento de um processo equânime e justo com feições constitucionais.
 
6 – Conclusão
 
O nosso propósito neste breve artigo foi discutir alguns dos principais avanços da teoria geral da prova, no âmbito da distribuição do ônus da prova, com o objetivo de instrumentalizar o operador do direito para contribuir, efetivamente, para o aprimoramento da tutela jurisdicional e do processo civil contemporâneo.

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